terça-feira, 2 de agosto de 2011

O primeiro dia em que chorei.

Certas coisas marcam na vida de uma criança. O brinquedo preferido, a namoradinha do colégio, as brincadeiras na rua. Eu, como um louco que sempre fui, me lembro do primeiro dia em que chorei. Chorei como se as lágrimas fossem me matar, o que eu não acharia ruim, afinal de contas a minha vida não fazia mais sentido naquele dia 28/11 de 1995.

Antes dessa data fatídica muita coisa ruim já havia acontecido na minha vida. O ano de 1995 foi o da separação dos meus pais depois de muitas brigas e cenas horríveis. Antes disso já havia me mudado de cidade, deixado os meus avós, tios e amigos para trás. Para uma criança era muita coisa. Mas eu nunca me deixei abalar. Estava sempre lá, como se tudo fosse milagrosamente melhorar um dia e todo o sofrimento fosse pequeno perto de uma vida inteira que eu tinha pela frente.

Mas naquela manhã o sofrimento foi maior do que toda a esperança em uma vida que eu poderia ter. Naquele momento não valeria a pena passar por tudo. Não valeria a pena insistir se tudo o que eu mais acreditava havia se ruído.

Lembro dos meses e esperando o dia chegar. Contava cada dia, cada minuto, cada segundo para aquela manhã do dia 25/11 chegar. Para uma criança ansiosa cada dia demora muito tempo. Lembro de imaginar esse jogo por meses e meses, de sonhar quase todos os dias com ele, de conversar com o meu avô o tempo inteiro sobre esse jogo, de ouvir ele me contando de como tinha sido o jogo de 1983, em que o Grêmio havia conquistado o mundo. Eu queria passar pelo mesmo. Eu queria passar por esse experiência única na vida, eu queria passar isso tudo com o meu avô e para contar para os meus netos também. Hoje o meu avô já está no céu azul e eu nunca pude dar nele aquele abraço feliz de campeão que passei meses esperando.

No dia anterior pedi para a minha mãe me acordar cedo, o jogo começou 8h da manhã se eu não me engano e lá estava eu, na cama, na manhã de uma quinta feira faltando a aula - qual mãe seria capaz de não deixar o filho faltar aula para ver o momento mais importante da vida dele?. De manhã, eu que mal havia conseguido dormir, agarrado com a minha camisa tricolor, torcendo pelo momento mais fundamental da minha vida, torcendo por aqueles homens que formaram o meu caráter e, não desconfiava ainda, prester a viver um dos momentos mais traumáticos que terei até o dia da minha morte.

O Ajax não era um time comum. Era uma máquina! A base da seleção holandesa, com alguns dos melhores jogadores do mundo como os Irmãos De Boer, Van der Sar, Finidi, Kluivert, Overmars, Davids, Seedorf e Litmanem. Lembro que durante meses só de pensar em um desses nomes me subia um frio na espinha. Eles eram os maiores vilões da minha vida. Não me importava nenhum vilão de cinema. Eu tinha os meus, eles eram reais e eu sabia que um dia teria que bater de frente com eles. Esse dia chegou e o Grêmio, aqueles onze homens que sangravam e corriam até desmaiar em campo (nada mais que isso), batiam de frente com os meus vilões, com os meus medos.

Rivarola foi expulso no começo do jogo e passamos quase 70 minutos jogando com 10 homens contra 11 daquela seleção do mundo. Aí já era demais, era covardia, eu só pedia piedade, aguardava pelo momento em que o Grêmio tomaria 3 ou 5 gols de uma vez só. Nenhum time no mundo aguentaria aquilo. Nenhuma criança aguentaria.

Mas o Grêmio segurou. Foi valente. Não tomou nenhum gol no jogo, não tomou nenhum gol na prorrogação e foi para os pênaltis. Os pênaltis! Onde não contava mais ter 10 ou 11 homens, os pênaltis onde os meus heróis poderiam resolver. Eu contava com o Danrlei para defender, ele era o maior goleiro do mundo e o Dinho e o Arce fariam os pênaltis, obviamente. Corria a lenda de que o Arce nunca havia perdido um pênalti na vida. E o Dinho era - e é - o meu herói. Ele nunca iria me decepcionar.

O Dinho errou o primeiro pênalti. Arce errou - pela primeira vez na vida - o segundo e o Danrlei não pegou nenhum. Quando eles erraram eu simplesmente não me mexi, fui me encolhendo (e eu estava sozinho no quarto, por superstição), me encolhendo tanto que caberia dentro de um potinho, escondia o meu rosto na camisa do Grêmio para não ver o meu time tomando um gol atrás do outro nos pênaltis. Mas não chorei. Se aqueles 10 homens foram capazes de segurar aquela seleção de 11 durante 120 minutos, eles iriam - por poderes mágicos - fazer tudo dar certo. Claro que eles iriam.

Mas naquele momento eu ví que a vida não seria tão boa quanto eu acreditava. Meus pais se separaram, eu deixei uma vida em uma outra cidade e sempre achei que tudo daria certo. Aquele dia 25/11 foi crucial para a minha vida e a minha formação. A vida é impiedosa. Não adianta correr dos seus medos e vilões. A tristeza é muito mais forte que a alegria. Meus super-heróis não tem super poderes. O céu não é azul. Tudo é cinza. A vida é cinza. Eu ainda teria que aguentar mais, pelo menos, 60 anos dessa vida injusta e difícil que aqueles holandeses me apresentaram. E eles vestiam vermelho. Eles vestiam logo VERMELHO, a cor que eu aprendi a ter nojo desde que nasci! A realidade foi jogada na minha cara, esfregada no meu peito e eu tinha só 8 anos.

Eu chorei. É a primeira lembrança que eu tenho minha mesma chorando. Chorei muito, por muitas horas. Lembro como se fosse ontem eu sentado na porta chorando, gritando de chorar, com o meu peito todo molhado de lágrimas e sem conseguir falar por muito tempo. Eu só queria ficar sentado no chão, sozinho, chorando. O mundo era uma imensa escuridão naquela hora. Passei dias sem comer direito, uma semana sem conseguir ir pro colégio. Era a única chance que eu teria na minha vida de ver o meu time campeão do mundo. Até hoje isso nunca mais aconteceu e acredito que nunca mais vá acontecer. Foi um golpe duro demais.

Até hoje - 17 anos depois - eu penso no que poderia ser diferente. Se eu tivesse passado a noite em claro, se eu tivesse vestido a camiseta, se eu tivesse de chinelos em vez de meias, se eu fosse uma criança melhor, se eu tivesse obedecido os meus pais, se eu, como que por um passe de mágicas, pudesse mudar alguma coisa e voltar 17 anos atrás para mudar alguma coisa eu mudaria. Até hoje eu tenho certeza de que poderia mudar alguma coisa e ver o meu time campeão do mundo. Eu poderia comemorar com o meu avô, contaria uma história linda para os meus filhos e netos daquele dia como ele me contava de 1983, eu seria uma criança feliz, iria acreditar em um mundo melhor, iria aproveitar toda a minha juventude. No entanto eu chorei. Chorei muito.

Naquele dia não foi só o meu time que perdeu. Fui eu que perdi o jogo. Perdi a inocência, perdi a ilusão, perdi o amor pela vida, perdi as cores que eu via no mundo, perdi a crença na humanidade.